Uma Vida Como Tantas Outras
Nos sombreados recantos deste tinto-aveludado salão, o fumo de tabacos orientais enche os espaços entre gargalhadas, gemidos e promessas libidinosas.
O tilintar das espraiadas manifestações de Baco faz-me imaginar coitos ébrios... emanações de uma época em que Deus era plural, vingador e ignorado pelos felizes...
Foi há 200 anos... e as ofertas nesta vida já usam perfume e vestem-se melhor.
Faço dos meus olhos sugadores buracos negros, à medida que, extasiado, perscruto o salão que me engole com as suas tentações e sentimentos de omnipotência secreta.
O meu olfato corta a densa mistura de vinho, charuto e perfume não tão barato, até se perder no doce aroma do estrogénio.
A ancestralidade avança pela divisão, marionetando as minhas pernas. Será, como ao longo dos séculos foi, mais do mesmo... mais inspirações e exalações, em que ninguém vê ninguém, mais mãos que não se conhecem a percorrer sedosas coxas que nunca mais voltarão a ser tocadas... só hoje.
Já não sou biólogo; não sondo carne com as minhas papilas gustativas... sou clero; absorvo almas quando abro o meu infinito, engulo-as quando as suas embalagens apenas sentem beijos e carícias sub-reptícias...
Onde outros veem o agora, eu trespasso a continuidade do etéreo e coleciono vidas após vidas, em cima da minha alma...
Sorrio dessa tolice, mas lembro-me de tudo. Nem todas as alcateias me são acolhedoras... é da natureza da falange que me é inata... presumo.
A minha tribo é a dos que uivam à lua, da fidelidade até ao osso, da batalha delineada pela última gota de sangue que resta no meu corpo, da incomensurável profundidade de seres abissais... dos que, quentes e selvagens, são propelidos por singulares frequências de pensamento, anciães da reencarnação, rejuvenescidos pelas roupagens, quando tudo começa outra vez.
Por isso, sei o porquê de alguns sentirem algo de errado na minha natureza quando me aproximo e me sento a uma mesa... há coisas inomináveis entre o céu e a terra... pelo menos para alguns...
Então, as palavras faltam, e as explicações também...
Restam apenas rejeição e incompreensão... mas não importa; neste tipo de pele sinto-me bem, pois nada permanece imutável e tudo seguirá o seu caminho.
Vemo-nos por aí, numa dessas vidas.
O Vitoriano