1 A.M.

É dissonante a melodia da minha vida. Com momentos de paz, nos dias em que a felicidade me beijou com lábios de amnésia, afastando-me da miserável existência que não reclamei... existência dada, em momento carnal, pelos meus pais.

Arsênico é a fragrância que areja esta tarde bafienta, estagnada como tantas outras.

Não sei por que escrevinho a minha sinceridade neste pedaço de papel áspero, pousado nas falhas do tampo da minha escrivaninha fatigada de tantos dias de sol, seguidos por noites sem fim.

Pó.

Pó em todo o lado, aquieta o futuro e amarela as memórias de quem regressou ao alívio do túmulo. Sou um triste forçado a sorrir, não necessitando eu de quem me dê amor.

Ninguém ama um carrancudo.

Ninguém gosta de quem vê a inutilidade do que nos rodeia, conjuntos de rituais aos quais apenas nós atribuímos significado.

Isto tudo, sem norte ou razão, andou até aqui sem nós, e, depois de nos esquecer, prosseguirá de igual forma... em compasso infinito... como um sol perdido no espaço, desprovido de planetas, a queimar o eterno cosmo.

O silêncio da finitude inevitável.

Queria voltar atrás, lá atrás à trepidação do primeiro momento de vida, no momento em que o coração me esburaca o peito na vibração de tudo o que é novo.

Lá atrás, onde a faísca do início me ofuscou os olhos, agora cegos pelo horror da minha passagem por cá.

Lá atrás.

Quero regressar lá atrás, ao início de tudo.

De tudo.

Na ponta de uma faca brilha a estrela em paz na escuridão do nada.

A única realidade permanente.

A mão estrangula e a lágrima cai. A mão protege e o coração afoga-se no remorso que acorda.

O sol brilha ao longe na inconstância do sonho, onde a mutilação não é concebida e as imperfeições se suavizam.

Olha, responde. Por que me dói tanto?!

Porque dói, oh, como dói. Porque me dói tanto que me faz desejar a morte, salvo pelo pequenino que me ama e me quer vivo.

Porque me dói sem grito ou drama. A corrosão do silêncio que me distancia e me mata e me traz a paz da petrificação. A dor que está, a dor que enclausura, a que enterra e que te conta o segundo da finitude.

A dor que te arrasta para o fundo do tempo que te resta e te ocupa com o vazio da miséria que de ti flui sem escolha.

Isto ficará em mim.

Isto ficará em mim.

Ele não curvará as costas sob o meu peso.

Isto ficará em mim.

Até que o caixão tudo limpe.

Já reparaste que o mundo está a dormir, mesmo contigo a gritar.

Sim. Todos estão a dormir.


Previous
Previous

Uma Vida Como Tantas Outras

Next
Next

O Homem no Barracão