Confessionário
A luz da lua ilumina o vapor da minha respiração, dando-lhe textura.
Está quase a acabar.
Tenho a pele ressequida e estaladiça da fonte sanguínea que secou, longas horas depois de jorrar, na altura da minha coroação.
Estou cego de um olho e tenho um pulmão perfurado; falhei, pois não tenho a Humanidade a meu lado.
O pano que me cobre as vergonhas perdeu o seu imaculado e é agora tinto como o sagrado que me corre nas veias.
Olho para os meus companheiros em castigo – já mortos; porém, os corvos ainda lutam pelos restos dos seus olhos.
Também chegará a minha vez.
Levanto a cabeça, já com dificuldade, e olho para a morada passada que tornará a sê-la novamente.
Não está lá ninguém; o meu Pai saiu, e ninguém sabe quando volta.
Tenho frio, não na pele, mas no coração, pois pelo regaço do meu Pai fui abandonado.
O meu corpo dilacerado treme… tanto quanto os pregos nas minhas mãos e nos meus pés o permitem.
O Homem… até hoje me confundo entre vontade de domínio ou paixão incondicional… nunca saberei se quis dominar ou salvar… nem sei se ambos não serão a mesma coisa.
Cúmplices que me ajudaram… um amigo que com um beijo selou o meu objetivo… vergou-se perante o ato por mim pedido e matou-se.
A frustração invade-me, sabendo que o que mais preciso alcançar-me-á apenas após a minha morte – a crença virá e a minha sombra seguirá, mas nunca alcançará a minha vida, pois estive sempre acordado e eles para sempre estarão a dormir.
A dúvida da existência de um pós-morte assola-me… a eternidade do meu legado consola-me.
Mas tudo isto foi bom apenas porque te conheci… minha doce Madalena…
Nunca te confessei, mas foste tu que me salvaste da lapidação eterna… lapidação que só conhece quem sempre teve como doce amiga a solidão.
As minhas atuais dores físicas, as minhas torturas espirituais, pelas nossas lembranças são aplacadas, pois a ausência de um grande amor é o que dói mais.
As nossas noites aquecidas pelas velas tranquilas do silêncio eram verdadeiramente divinas.
Nessas noites deixavas-me alcançar Deus.
Todos os pequenos milagres que fiz, preces que proferi, amor divino que espalhei… nada me deu as escadas para a casa Dele como o toque do teu corpo e a envolvência da tua alma.
O êxtase do prazer nos teus braços, terna Maria, deu-me a salvação que em tempos dei a outros.
Já não me resta vontade para permanecer aqui.
Esquecerei a Humanidade toda e, ao contrário do que dirão, jamais voltarei, e pedirei ao meu Pai para que esta morada seja fechada e por Ele esquecida.
Mas antes de partir, minha querida Madalena, fica a saber que és a minha esposa prometida e, desta raça de filhos ingratos e irmãos bastardos, a única que não será esquecida.
Quando um dia o corpo que meu Pai te deu, e que a mim tanto ensejo forneceu, te falhar por cansaço, não temas, pois ao fugir dele, a tua alma cairá no meu quente abraço.